terça-feira, 1 de março de 2011

1º de Março

Hoje é aniversário da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Estranho comemorar 446 anos de fundação de uma cidade a partir da chegada de portugueses sob o comando de Estácio de Sá. Primeiro, porque a área já contava com a presença de franceses, já 10 anos antes dos portugueses travarem o conflito e saírem vitoriosos.

Mais estranho ainda é comemorar a data de fundação de uma cidade sobre uma terra que já contava com milhares de Tupinambás e Tamoios, expulsos, mortos e escravizados ao longo de todo o período do que chamamos de "colonização".

1º de março de 2011: 446 anos de fundação de UMA história de uma cidade.

3 comentários:

  1. tem um elemento interessante nessa idéia do aniquilamento dos Tupinambás, dos guaranis, dos Tamoios [ou de qualquer referência ao imaginário de "índio" que tão passivamente herdáramos] e que, sem querer, ainda passamos. A idéia da morte, que traz a finitude (o que é limitado, o que acaba), que é, no caso, superado pela ação potente do dominador. Venho pensando, e falava outro dia para alguém que, na verdade, a finitude é apenas um viés da eternidade, nós é que não percebemos (e sem perceber também, vejo agora, vou me entrelaçando em um diálogo com Espinoza, ou talvez achando uma condição histórica para sua metafísica da Substância e dos seus atributos, estes sim infinitos).

    A idéia da derrota histórica, da perda, do sumiço e da submissão é um fardo pesadíssimo pra se carregar junto com uma língua que nos é imposta junto com o triunfo do orgulho alheio (vide Fanon aqui citado no teu último Post). Entretanto, a afirmação de uma permanência não é apenas birra de quem se apega saudosamente ao que (ou a quem) perdeu na história, sem querer assumir essa perda (no sentido de morte mesmo). O apego afetivo*(logo político) à subalternidade contemporânea ou ao indígena da era colonial é de fato em si uma afirmação hoje que tem suas bases históricas em um movimento substancial (ainda em Espinoza), em que algo que nos constitui ontogenicamente, mesmo que negado e subalternizado, emerge com a sua aura (Benjamin) restituída no cotidiano e na luta que r-existe (Achinte, Mignolo). Não é apenas nos nomes com que o invasor e o criollo – este no processo de cristalização da sua própria colonialidade, batizaram inúmeras ruas da metrópole que se concentra o legado dos povos originários, assim como não é apenas no samba e no futebol, emblematizados como símbolos de um emergente estado nação euro/brasileiro, que vive a potência da cultura africana no Brasil hoje. Muito menos é apenas a memória de algo acabado e morto o que alimenta cotidianamente a rebeldia e sua dignidade. Nos corpos, na fala, no jeito, em tanto vocabulário, na indignação, nas práticas, nos usos, na comunitariedade, na solidariedade, mas também na afetividade, no gosto, na musicalidade, nas estéticas ocultas que por vezes emergem inpensadas e, é claro, na desobediência epistêmica e política, na rebeldia que se organiza e se desfaz para se refazer de um modo sempre inesperado, é que vive e se reinventa aquilo que, por padrão, tendemos a entender como unicamente morto ou oprimido, preso, coagido.

    PS (ou dos inesperados cursos de qualquer debate): uma figura aqui olhando o meu post já retruca: mas é que a gente toma partido, criticar o colonizador já é assumir a defesa do índio....
    Parei, pensei... sim, com certeza, mas não só... o que me parece é que em todos nós, mesmo e independente das nossa intenções, por sermos criaturas do nosso tempo, logo tão herdeiros do Estácio de Sá como o que mais, há um viés de colonialidade que aparece em uma frase ali, em outra razão por lá, e que faz parte, não é necessariamente ruim, pecaminoso, ser o que somos, mas que por vezes fortalece o próprio e discurso e a lógica da dominação colonial, por restar potência ao que ainda é vivo em nós.

    PS2: tenho clara consciência de que peguei um fiozinho do casaco e parti pra tecer outro pé de meia, não estou debatendo o que o Beto postou, tá?
    :o) abraços aos blogueiros e blogueiras

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  2. Exato.
    E é exatamente esse viés dicotomizante uma das princiáis tentações que devemos evitar. Está presente na lógica do tempo-espaço, com a morte e a inscrição de uma pretensa nova histária. Mas, está também no pensamento que reduz o conflito a ser uma mero combate, inócuo e acabado em si.
    No entanto, falar sobre o aniquilamento de um povo é também denunciar os aniquilamentos cotidianos que fazem parte da mesma matriz que produziu esse passado.
    O projeto colonial não existe fora dos sujeitos, não é uma entidade, mas é relacional. Assim se expande e se alimenta.

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  3. Resgato, no sentido de salientar mesmo, a idéia de produção de um passado hegemônico como condição de controle e perpetuação de um modo de se viver em sociedade, baseado na opressão constante do diverso, do outro. Esse movimento, do mesmo jeito que esse “projeto colonial” de que vc fala, e que entendo como a lógica do capital, a sociabilidade do capital, o saber hegemônico que dá a sua (in)coerência e amalgama ao real hoje, nasce e morre nessa afirmação/negação, a cada dia, das mais diversas maneiras. Com certeza não é uma “entidade” nem é externa a nós. Mas para além disso, e por esse mesmo fio, me parece a cada dia mais importante frisar que não poderíamos falar, então, na existência de um sistema capitalista - unívoco, fechado, reificado e coerente que opera do mesmo modo no mundo todo, mas sim de um sistema mundo moderno/colonial que reinventa as sociedades do capital e as suas estruturas de dominação das mais diversas maneiras. Penso por ai que a teoria do desenvolvimento desigual e comparado, do Florestan, aponta um elemento fundamental para compreender essa relação do capital/trabalho em escala global, mas é apenas uma ponta de Iceberg, se pensarmos a complexidade de relações estabelecidas em cada campo local, se invertermos o olhar a partir desse local e tentarmos nele enxergar o global (como nos propunha o Milton Santos).

    Concordo em que reduzir a conflitividade da vida na sociedade do capital à lógica binária da guerra, do combate, do eles e nós seria, na perspectiva decolonial, abrir mão da complexa riqueza que os contextos interculturais nos oferecem e que isso não significa, de maneira nenhuma, negar o conflito. Seria também, hoje, cair de cara no discurso dos apologistas da impotência, que usam a onipresença do poder bélico do norte como desculpa para a impossibilidade de um mundo melhor aqui e agora. Entretanto, não sei se a noção de “relacional” dá conta do recado para explicar, ou ajudar a entender, o dinâmico e mutável modo em que se dão as estruturas de dominação, notadamente no que se refere às estruturas epistêmicas que nos oprimem como opressores de nós mesmo e dos outros. Essa tensão entre o estrutural e o dinâmico, entre o fatalismo e o autônomo, entre a reprodução, mesmo que mutante, e o novo que emerge inesperado, continua a se configurar em um dos emaranhados mais complexos para se entender a vida na sociedade do capital.

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